segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Elomar


“Como os filhos do vento, um dia lá pelos confins do saldoso seclo XX, ele aportou na Casa dos Carneiros, era um minguante de lua de maio, me lembro. Não vinha só, trazia aos ombros um alaúde firmado pela dextra e um lírio na sinistra mão que falava de caminhos, veredas e estações perdidas... tendo os rastros recalcados pelos pequenos pés de peregrina monja. E renitente no instrumento empoeirado pincelou um campo de flores djaniras roxos lírios das vazantes primaveris, por quanto o balido das ovelhas e bodejantes pais-de-chiqêro... que não mais vale a pena cantar nos albores deste seclo, pelasclaras do milênio na morada dos surdos! Não mais adianta a semeadura se o campo é de pedras... “Lajedo imenso é o chão”. Que cesse a voz núncia; é tempo de silêncio dos arautos, dos que anunciam a guerra e que proclamam a paz. Não adianta! Esqueça caminheiro errante, emudeça-te, ponha a mordaça, queda-te à beira do caminho e ouça no silêncio os teus idos amados na voz suave do Senhor dos Exércitos trazida pelas vibrações da tarde. Assim como os de outros que não conhecemos, os teus, os meus, não têm mais lugar cantares nestes dias. Neste mundo da coisa emergente onde a canalha triunfante altissonantemente discursa, manuseia e urra no funeral da forma.”
Lagoa dos Patos – na faixa proterozáica – Elomar – 2005

Este texto foi retirado da contracapa do cd de Roberto Bach, que em um dia que vai longe, apareceu no Atelier com um violão, tocou um Jethro Tull, disse que não existe mais espaço para os menestréis nas universidades, que é um dos últimos verdadeiros vagabundos e trocou o cd por um desenho meu.

sábado, 24 de outubro de 2009

Uma Tranquila e Bucólica Tarde de Domingo


O porquê de relembrar no momento exato ao acordar, mais cedo que o costume, do sonho-realidade em que estava literalmente passeando por um dos andares de uma grande casa, ou navio, ou por uma das espaçosas varandas do purgatório. Estavam dezenas de pessoas deitadas em sofás velhos, cada uma com um pequeno grupo da sua própria família. Vi a minha. De pessoas que já morreram cuidando das que estavam quase. Olhei e achei interessante. Continuei o passeio com as mãos entrelaçadas às costas. Não tinha mais nada que fazer, pois não pertencia àquele lugar, era somente um visitante. Depois do almoço, das louças lavadas, ouço Camargo Guarnieri em seus concertos profundamente tristes, ora nem tanto. A boxer me olha com olhos esbugalhados e sapientes. O que ela sabe que não sabemos? O fagote volta a tona e se mistura com o som do raspar das folhas. Cai a tarde. Amanhã serão os telefonemas e os impostos: outro tipo de sonho. Virgínia Woolf morreu por não aguentar o contínuo prazer de escrever palavra por palavra, saboreando-as como um bom vinho ou uma fumaça que evola redondamente do cachimbo. Está quase impossível achar alguém que ame o silêncio. Depois de ouvir o matinas de finados do padre José Maurício Nunes Garcia e de ler os textos de manifestos da revista De Stijl, onde “para o escritor moderno, a forma terá uma significação diretamente espiritual, ele não descreverá nenhum acontecimento, não descreverá nada: escreverá. A poesia asmática e sentimental – o eu e o ele – que é perpetrada em toda parte e principalmente (...), um resíduo fermentado de um tempo velho e que nos enche de tédio”, na tradução de Goulart de Andrade, penso em reescrever o início deste texto como se eu fosse mais um fantasma, ou seja, mais um passageiro daquela dita mansão. Aguardo o rocambole de goiabada ficar pronto: com receita transcrita para o velho caderno carcomido (perceberam o chiste?) e longe, em outro bairro, ouço de um falante rachado, a voz de uma música perversa que não é música, é só “tecnologia a serviço do lixo”. Também esse ruído da batedeira é ingrato, mas vale a goiabada vermelha e pastosa que logo vai virar lembrança. Desci à matinha, ar cheio de pernilongos. Tenho saudades do atelier que nunca tive. Acho que as maritacas irão fazer os seus ninhos lá. A boxer sumiu e o caminhão de brinquedo ficou sozinho, esquecido no cimentado, pois hoje é dia de aniversário do inimigo. Outro silêncio. O som surdo dos latidos dos cachorros vizinhos fazem as folhas balançarem.

sábado, 10 de outubro de 2009

José Saramago por Umberto Eco


Curioso personagem, este Saramago. Tem 87 anos e (diz ele) algumas moléstias. Ganhou o Nobel, distinção que lhe permitiria nunca mais produzir nada porque seja como for já tem no Panteão o seu lugar garantido (o avarento Harold Bloom definiu-o “o romancista mais dotado de talento ainda em vida… um dos últimos titãs de um gênero literário em vias de extinção”). Mas eis que o vemos mantendo um blog onde se mete com toda gente, atraindo para si polêmicas e excomunhões vindas de muitos lados – mais frequentemente não por dizer coisas que não deve dizer mas porque não perde tempo em medir as palavras – e talvez o faça de propósito.
Mas, precisamente, ele? Ele que cuida da pontuação ao ponto de fazê-la desaparecer. Ele, que na sua crítica moral e social jamais afronta os problemas de cara, mas poeticamente os contorna nos modos do fantástico e do alegórico, de modo que o seu leitor terá de pôr algo de si para compreender até onde vai parar – como no seu Ensaio sobre a Cegueira –, em que faz o leitor viajar numa névoa leitosa em que nem sequer os nomes próprios, de que é bastante parco, dão um sinal claramente reconhecível? Ele, que no Ensaio sobre a Lucidez faz uma opção política decidida com base em enigmáticos votos em branco? E é este escritor fantasioso e metafórico vem nos dizer, despreocupadamente, que Bush é de “uma ignorância abissal, e uma expressão verbal confusa perenemente atraída pela irresistível tentação do puro despropósito”, um cowboy que confundiu o mundo com uma manada de vacas, que não sabemos sequer se pensa (no sentido nobre da palavra), robô mal programado que constantemente mistura mensagens que tem registradas lá dentro, mentiroso compulsivo, corifeu (NT – o chefe do coro nas antigas encenações de tragédias gregas) de todos os outros mentirosos que o aplaudiram e serviram nos últimos anos? E é este delicado tecelão de parábolas que usa palavras que não deixam margem para dúvidas quando define o dono da editora que o publica? E é este ateu manifesto, para quem Deus é “o silêncio do universo e o homem o grito que dá sentido a este silêncio”, o que recoloca Deus outra vez em cena para se interrogar sobre o que pensa Ratzinger? É quem, militante comunista (ainda tenazmente), põe-se a gritar que “a esquerda não tem a menor ideia do mundo em que vive”? É quem se arrisca à acusação de anti-semitismo por ter criticado a política do governo de Israel, simplesmente esquecendo-se, na sua irada participação nas desventuras palestinas, de se lembrar que há quem negue o direito à existência de Israel? Mas ninguém leva em conta que, quando fala de Israel, Saramago pensa em Javé, “Deus rancoroso e feroz”, e neste sentido não é mais anti-semita do que anticristão, dado que para todas as religiões procura ajustar contas com Deus – que evidentemente, chame-se como se chamar nas várias línguas, não cessa de importuná-lo. E ser importunado por Deus é certamente motivo de ira furibunda contra todos os que dele fazem um escudo.
Se tivesse sempre em conta os prós e os contras, Saramago também saberia que há maneiras e maneiras. Cito (de memória) (Jorge Luís) Borges, que citava (talvez de memória) o doutor Johnson, que citava o caso de fulano que insultava assim o adversário: “Senhor, a vossa mulher, com a desculpa de gerenciar um bordel, vende tecidos de contrabando.” Saramago, pelo contrário, não faz cerimônia. Quer dizer, deixa os rodeios e não manda dizer por outro na sua atividade de comentador diário da realidade. Vai à desforra sobre todo devaneio oblíquo de quaisquer fabulações.
Tem-se falado muito do ateísmo militante de Saramago. De fato, sua polêmica não é dirigida a Deus: uma vez admitindo que “sua eternidade é só a de um eterno não-ser”, Saramago poderia estar sossegado. A sua aversão é contra as religiões (e é por isso que o atacam de vários lados, negar Deus é concedido a todos, enquanto polemizar com as religiões põe em causa as estruturas sociais). Em uma ocasião, estimulado por uma das intervenções anti-religiosas de Saramago, refleti sobre a célebre definição marxista, para quem a religião é o ópio do povo. Mas será verdade que as religiões têm esta virtude soporífera? Saramago tem atacado as religiões como germe de conflito: “As religiões, todas sem exceção, nunca servirão para aproximar e reconciliar os homens. Pelo contrário, foram e continuam a ser causa de sofrimentos indescritíveis, de chacinas, de uma monstruosa violência física e espiritual que constituem um dos mais tenebrosos capítulos da mísera história humana” (La Repubblica, 20 de Setembro de 2001).
Saramago concluía em outra parte que “se fôssemos todos ateus, viveríamos numa sociedade mais pacífica”. Não tenho certeza de que tenha razão, e parece que indiretamente teria respondido a ele o papa Ratzinger na encíclica Spe salvi, em que dizia que é o ateísmo dos séculos 19 e 20 que provocou que “de tal premissa tenham resultado as maiores crueldades e violações da justiça”.
Talvez Ratzinger estivesse pensando em gente descrente como Lênin e Stalin, mas se esquecia que nas bandeiras nazis estava escrito Gott mit uns (que significa “Deus está conosco”), que falanges de capelães militares benzeram os arruaceiros fascistas, inspirados em princípios religiosíssimos e apoiados nos Guerrilheiros do Cristo-Rei, um culpado de tantos massacres como Francisco Franco, que religiosíssimos eram os vandeanos (NT – na França, por volta de 1790, camponeses, monarquistas e religiosos tentaram deter a revolução republicana. Eram chamados vendeanos, porque eram de uma província do interior da França chamada Vendéia) eram contra os republicanos, que católicos e protestantes se massacraram alegremente durante anos e anos, que tanto os cruzados como os seus inimigos eram impelidos por motivações religiosas, que por razões religiosas se acenderam inúmeras fogueiras, que religiosíssimos são os fundamentalistas muçulmanos autores do atentado das Torres Gêmeas, Osama e os talibãs, que por razões religiosas se opõem Índia e Paquistão, e, para terminar, que foi aos gritos de God Bless America que Bush invadiu o Iraque.
Por tudo isso me pus a refletir que sim, talvez em muitas ocasiões foi ou é a religião o ópio do povo e com maior frequência tem sido a sua cocaína. Creio que esta é também a opinião de Saramago.
Escrevo este prefácio porque acredito ter uma experiência comum com o amigo Saramago, que é a de escrever livros (por um lado) e ter (por outro) uma coluna de críticas de costumes em um semanário. Por ser este segundo tipo de escrita mais claro e de maior alcance do que o primeiro, são muitos os que me perguntam se o que faço é extravasar peças jornalísticas e deixo as reflexões mais desenvolvidas e amplas para os livros maiores. Não. É o impulso de irritação, a dica satírica, a chicotada crítica escrita à pressa, que fornecerá a seguir o material para uma reflexão ensaística ou narrativa mais elaborada. É a escrita diária que inspira as obras de maior empenho, e não o contrário.
E, por isso, eu diria que em seus breves escritos, Saramago continua a fazer a experiência do mundo tal como desgraçadamente ele é, para depois revê-lo a uma distância mais serena, sob a forma de moralidade poética. E, ademais, estará realmente sempre assim tão zangado este mestre da filípica e da catilinária? Parece-me que além da gente que ele odeia também existe a gente que ele ama, e eis as peças afetuosas dedicadas a Fernando Pessoa (não se é português em vão) ou a Jorge Amado, a Carlos Fuentes, a Federico Mayor, a Chico Buarque de Hollanda, que nos mostram que este escritor é pouco invejoso dos colegas e sabe tecer-lhes delicadas e ternas miniaturas.
Para não falar de quando a análise da atualidade vai a temas (e aqui estamos de volta aos grandes assuntos da sua narrativa) como os grandes problemas metafísicos, a realidade e a aparência, a natureza da esperança, como são as coisas quando não estamos olhando para elas. E volta à cena o Saramago filósofo-narrador, já não zangado, mas meditativo e inseguro. Contudo, não nos desagrada mesmo quando se enfurece. É ainda mais simpático.


Umberto Eco é escritor. Este texto é o prefácio à edição italiana de O Caderno, obra que reúne os comentários que o escritor português, vencedor do Nobel, publicou em seu blog até março de 2009. O texto foi publicado originalmente no jornalLa Reppublica e, posteriormente, no El Pais. Foi traduzido do italiano para o espanhol por Carlos Gumpert e do espanhol para o português por Olímpio Cruz Neto.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Tempo


Eu não amava que botassem data na minha existência. A gente usava mais era encher o tempo. Nossa data maior era o quando. O quando mandava em nós. A gente era o que quisesse ser só usando esse advérbio. Assim, por exemplo: tem hora que eu sou quando uma árvore e podia apreciar melhor os passarinhos. Ou: tem hora que sou um rio. E as garças me beijam e me abençoam. Essa era uma teoria que a gente inventava nas tardes. Hoje eu estou quando infante. Eu resolvi voltar quando infante por um gosto de voltar. Como quem apreça de ir às origens de uma coisa ou de um ser. Então agora eu estou quando infante. Agora nossos irmãos, nosso pai, nossa mãe e todos moramos no rancho de palha perto de uma aguada. O rancho não tinha frente nem fundo. O mato chegava perto, quase roçava nas palhas. A mãe cozinhava, lavava e costurava para nós. O pai passava o seu dia passando arame nos postes de cerca. A gente brincava no terreiro de cangar sapo, capar gafanhoto e fazer morrinhos de areia. Às vezes aparecia na beira do mato com as sua língua fininha um lagarto. E ali ficava nos cubando. Por barulho de nossa fala o lagarto sumia no mato, folhava. A mãe jogava lenha nos quatis e nos bugios que queriam roubar nossa comida. Nesse tempo a gente era quando crianças. Quem é quando criança a natureza nos mistura com as sua árvores, com as suas águas, cm o olho azul do ce. Por tudo isso que eu não gostasse de botar data na existência. Por que o tempo não anda pra trás. Ele só andasse pra trás botando a palavra quando de suporte.

Manoel de Barros Memórias Inventadas A Segunda Infância